Dr. Rui Ribeiro – Cirurgia da obesidade e diabetes

Diabetes

Diabetes

O tratamento cirúrgico da diabetes tipo II ou do adulto com excesso de peso, assume-se hoje como uma das primeiras grandes novidades da medicina do Século XXI, provavelmente a maior.

Trata-se de um avanço tão polémico como importante a vários níveis, uma vez que a diabetes tipo II é, só por si, responsável por uma enorme quantidade de sofrimento individual e colectivo. A diabetes  é a terceira causa de morte em todo o planeta e é um dos principais factores de risco da aterosclerose e das doenças cárdio e cérebro-vasculares, no seu conjunto a principal causa actual de morte. A diabetes é também a principal causa de cegueira e uma das principais em casos de insuficiência renal crónica em hemodiálise. Provoca também lesões nervosas periféricas que se traduzem em défices de sensibilidade (polineuropatias periféricas) que por sua vez originam úlceras diabéticas arrastadas de difícil tratamento e que, invariavelmente, acabam em amputações do todo ou de partes dos membros inferiores. Toda e qualquer infecção é, potencialmente, mais grave num diabético em virtude de um mal conhecido estado de défice imunológico que põe em risco os órgãos alvos dos agentes patogénicos. Isto para além de outros aspectos menos chamativos mas igualmente importantes.

Por tudo isto, entre custos directos e indirectos, consome cerca de 15% dos recursos do Sistema de Saúde Americano, isto segundo fonte oficial governamental americana.

Mas, mais importante do que isso e do ponto de vista social, a diabetes é uma importante causa de mal-estar, individual e familiar, responsável por importante fatia do absentismo profissional e social.

No campo da terapêutica médica sabemos que os diabetologistas usam cada vez mais associações de fármacos e introduzem cada vez mais cedo a insulina a qual permite um melhor controlo do nível de açúcar do sangue, o grande responsável pela acção destrutiva da diabetes. Mas, mesmo com insulina, o controle é muitas vezes imperfeito e isso significa a inevitabilidade do aparecimento das lesões e do sofrimento a elas associado, muitas vezes levando á morte.

Como se isto tudo não bastasse verificamos, hoje em dia, a um crescimento exponencial de caso de diabetes tipo II, que constitui 90% dos casos totais de diabetes. Nos Estados Unidos e pela primeira vez na História o número de crianças e adolescentes com diabetes tipo II ultrapassou o número de diabéticos do tipo I, cujo aparecimento é característico desse escalão etário.

Calcula-se que a diabetes incida hoje em 200 milhões de humanos e prevê-se que atinja os 250 milhões em 2010 e os 300 milhões pelo ano de 2025. É pois de uma doença com de pandemia, isto é, uma epidemia que atinge todo o mundo e não apenas uma parte dele.

É esta doença de difícil controle que os cirurgiões se propõem agora tratar fazendo uso do bisturi no lugar dos numerosos fármacos disponíveis no armamentário médico. E como surgiu esta ideia para muito descabida de operar diabéticos? E como conseguem que os doentes tenham níveis normais de açúcar no sangue e deixem se tomar os seus fármacos e de se injectar com insulina? A resposta vem do sector da cirurgia da obesidade. De facto, a cirurgia da obesidade mórbida percorreu um dos mais curtos e vertiginosos trajectos de que há memória. Existindo desde os anos 50, as operações para controlar a obesidade nunca granjearam grande fama nem popularidade nem entre os médicos nem no público em geral, não exactamente pela falta de resultados mas devido à elevada taxa de complicações que produzia quando era feita por cirurgia dita “a céu aberto”.

Mas, apesar dessas dificuldades, alguns cirurgiões praticaram esse tipo de cirurgia durante largos anos, sobretudo nos EUA mas também nalguns países europeus. Entre eles, Walter Pories, cirurgião do “East Carolina University School of Medicine” exercendo em Greenville, inicia em Fevereiro de 1980, uma série de cirurgias de obesidade, com grande êxito, a que chamou o “Bypass de Greenville”. Mas com espanto, verifica ainda que os doentes diabéticos, além de emagrecerem, deixam de precisar tomar os seus medicamentos, muitas vezes no dia seguinte à operação o que indicia tratar-se de um efeito directo e não consequente ao emagrecimento. Aparentemente estes doentes ficam curados em cerca de 6 semanas deixam os seus medicamentos e têm níveis de açúcar no sangue perfeitamente normalizados. Outros parâmetros de avaliação dos efeitos da diabetes, como a Hemoglobina A1C revelam uma melhoria que contrasta com a pobreza de efeitos do tratamento médico.

Além disso, Pories demonstra que os seus doentes “curados” ou “controlados” para os mais cépticos, mantêm esse efeito a longo prazo tendo a sua série ultrapassado já os 20 anos. Nos primeiros anos, Pories escreve diversos artigos em revistas médicas e expõem insistentemente o assunto em congressos médicos mas ninguém se revela disposto a valorizar a sua revelação, a cirurgia pode cirurgia pode “curar” a diabetes do doente obeso.

No início dos anos 90 ocorre a chamada terceira revolução da cirurgia. Falamos do advento da vídeocirurgia de que a modalidade mais conhecida é a laparoscopia. Os cirurgiões passam a operar com pinças longas introduzidas no interior do abdómen por meio de pequenas cânulas chamadas trocartes, vendo os seus gestos reproduzidos em monitores semelhantes a televisões. Isto permite fazer cortes mínimos na pele e, como tal, inflige-se menos dor aos doentes. Esta nova forma de abordagem, compreensivelmente chamada de mini-invasiva, caracteriza-se por provocar menos dor, menos infecções e menos hérnias, com internamento mais curtos e mais rápida recuperação para o trabalho e actividades sociais.

Aplicada à “velha” cirurgia da obesidade, a laparoscopia viria a permitir uma subida logarítmica do número de operações para controlo da obesidade e a consequente ascensão ímpar deste tipo de cirurgia que hoje se encontra entre os procedimentos mais procurados em todo o mundo, também por força da disseminação epidémica da obesidade mórbida sobretudo nos EUA e nos países de melhor condição socioeconómica.

Multiplicando-se as reuniões médicas sobre o assunto, Walter Pories começa a ser ouvido e postula que a cura imediata da diabetes após uma cirurgia de Bypass gástrico resulta da indução de alterações nas hormonas que regulam a fome e a saciedade. Mas, por essa altura, muitos outros cirurgiões já haviam verificado o efeito anti-diabético do Bypass gástrico dando crédito a Pories e dando origem a uma nova era. Pessoalmente, o meu grupo de trabalho iniciou, no Hospital de São José, a cirurgia da obesidade em 2001 e com cerca de 1400 operações de obesidade estamos em perfeitas condições de confirmar esta nova realidade. Entre os nossos doentes operados cerca de 15% são diabéticos de tipo II e destes 85% viram as suas diabetes controladas, o que pressupõe, só por este factor independente, um acréscimo de anos de vida e, sobretudo de qualidade de vida, apreciáveis e inatingíveis por outra via. E isto sem falar dos restantes benefícios associados ao emagrecimento produzido.

Como entre nós, por todo o mundo o interesse cresce e Francisco Rubino, laparoscopista italiano, inicia no final dos anos 90, uma série de trabalhos experimentais que viriam a revelar alguns dados fundamentais sobre o conhecimento do mecanismo de controlo da diabetes pela cirurgia, apontando nitidamente para se tratar de um efeito endócrino ou metabólico em que as mudanças anatómicas induzidas pela cirurgia se reflectem em alterações hormonais importantes e que começam a ser estudadas de forma podemos dizer frenética. De entre uma centena de hormonas produzidas pelo intestino, chamadas incretinas, o GLP1 (Glucagon Like Peptid tipo 1), o GIP (Glucosedependent Insulinotropic Peptid) e o PYY3,36 (Pancreatic Peptid tYrosine-tYrosine, também conhecido por PPY3,36) tornam-se protagonistas e são hoje profusamente investigados. Estas moléculas proteicas produzidas em diferentes locais do intestino têm a capacidade de controlar o apetite e de regular a produção de insulina e glucagon pelo pâncreas, a produção de açúcar pelo fígado, bem como tornar a insulina produzida pelo próprio organismo de novo eficaz no controle da glicemia, isto é, dos açúcares do sangue. E até as próprias células pancreáticas produtoras de insulina, aparentemente cansadas e moribundas no estado diabético, voltam a florescer e aumentar de tamanho e número após um bypasss gástrico ou similar.

Esta é a grande contribuição da cirurgia moderna para a nova pandemia do Século XXI, umbilicalmente ligada à cirurgia da obesidade. Se hoje em dia falta a confirmação, dita científica, destes efeitos na diabetes, os estudos em curso encarregar-se-ão de a fornecer. Os estudos randomizados e prospectivos (condições “sine qua non” para validar conclusões de estudos) em curso produzirão resultados que confirmarão aquilo que os cirurgiões dizem hoje ser verdade embora não saibam explicar perfeitamente porque acontece. Até lá, mesmo os médicos que não têm contacto com a realidade destas operações têm muitas dúvidas sobre a veracidade dos seus efeitos e muita tinta vai correr até esta modalidade terapêutica ser aceite como válida. Isto porque o envolvimento de um acto cirúrgico implica riscos que, sendo diminutos não são desprezíveis. E, por outro lado, a inultrapassável questão dos custos do tratamento cirúrgico inviabilizam esta modalidade como terapêutica de massa para os 300 milhões de diabéticos esperados em 2025.

Mas, na prática, existe uma luz ao fundo do túnel e quem sabe o diabético tipo II de hoje pode deixar de ser o ser amanhã e, sobretudo, pode aumentar a sua qualidade de vida e libertar-se do espectro de complicações desta terrível doença.

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